Delay

Inconveniente. Chega sem ser chamado. Atrapalha relações. Constrange ao extremo. Desencoraja. Falo do delay. Não aquele que a sua amiga de classe insistia em denunciar após as boas tiradas, não, aquele reservado ao exército dos corajosos que se aventuram no desconhecido.

Quando você chega para morar em outro país, cujo idioma você não domina, uma série de sentimentos confundem sua mente. Ora ânimo, ora depressão. Ora coragem, ora fuga. Mas naqueles primeiros dias, saí de casa como se fosse ganhar o mundo inteiro, fui naquela loja fazer um cadastro e, quando a funcionária percebeu que a conversa não ia avançar sossegadamente, ela chamou uma outra e pediu pra falar em espanhol comigo, o que não ajudou muito. A trancos e barrancos deu pra voltar pra casa com o objetivo alcançado, eu suava, mas o objetivo foi alcançado.

Meu filho começou na escola. Gostei tanto de lá que queria falar com todo mundo e passar o dia, conhecer os pais, professoras, ser voluntária, tudo isso aí. Toda sexta-feira os pais são convidados para participar da capela, quando todos os alunos participam de um cultinho especial. Decidimos ir. Era a primeira sexta-feira do Noah na escola.

Animados sentamos na recepção com os demais e nos aborda um pai muito bacana, percebendo-nos recém chegados puxou assunto, e chega, para variar, ele, o delay, começa o show. O homem fala uma frase e olha no fundo dos meus olhos :: pausa :: pausa :: mais um pouquinho de pausa :: o olhar do moço começa a parecer confuso :: pausa :: e, enfim, consigo traduzir mentalmente o que ele quis dizer. Meu cérebro trabalhou muito rápida e ininterruptamente nos segundos que se passaram. Dou um sorriso, ele não consegue disfarçar o alívio e suspira. O que ele não sabe é eu tenho que traduzir duas vezes antes de eu responder. Ótimo! Agora vou responder :: pausa :: hum, pera, se eu soubesse que ia demorar desse jeito tinha começado a elaborar a frase um pouco antes :: pausa :: olhar do moço paralisado :: sobrancelhas se erguem :: estou quase lá :: ele troca os traços do rosto, imagino que ele queira dizer outra coisa para evitar meu constrangimento, mas começaria tudo de novo, ele para :: consigo traduzir e digo uma frase.

Não muitas frases depois, as duas partes percebem estar travando mais uma batalha do que um diálogo e desistimos. Vai cada um para o seu lugar, sentados evitamos cruzar os olhares. E aumenta a ansiedade para que algum acontecimento, por mais simples que seja, nos conduza a alguma atividade. Meu filho aparece e puxa conversa comigo, ufa.

A essa demora em processar chamo: delay. Algo muito distante do que conhecemos como tradução simultânea. A esse diálogo seguem-se tantos outros de igual forma e quando dá a hora de voltar pra casa, minha nossa, que alívio!

Agora os encontros sociais carregam consigo essa tensão. Parece não haver outro jeito, ficar em casa e evitá-los seria somente o fim do propósito de estarmos aqui. Ainda que, com diploma, tendo deixado excelentes oportunidades de emprego, uma carreira profissional solidificada, sendo respeitada em todos os ambientes que frequentava, a vontade que tenho é dizer:

“I know it’s hard to believe me now but, in Portuguese, I’m very good with words!!”

“Eu sei, é difícil de acreditar mas, em português, eu sou muito boa com as palavras!”

Os sábados, na igreja, são o ápice dessa aventura. Muita gente amiga motivada a fazer a gente se sentir em casa, nos procura e puxam papo. Elas tentam, tadinhas. “Gosto tanto delas. Não são obrigadas, vou melhorar com o tempo. Tenham paciência”, penso. Os sermões? Ah sim! Lembra aquela aula de química, quando você estava conversando com seu colega ao lado e só notou o professor do meio da aula pra frente? Não pegou nadinha do que ele estava dizendo, né? Então, pior.

Me concentro ao máximo. Prometo. Mas acho que não alcanço os dez minutos e já estou pensando em algo tão distante que tento fazer o caminho de volta para entender como fui parar lá. Aí começam outros dez minutos.

Essa incapacidade de se comunicar faz a gente sentir cada serifa de cada uma das letras que compõem a palavra: LIMITAÇÃO. Não é querendo fazer graça, mas a real é que a gente se sente um lixo mesmo. Ninguém me conhece, ninguém sabe o que eu fiz nem de onde eu vim. Ninguém conhece a minha família. Ninguém sabe porquê estou aqui. Ninguém sabe que eu sou engraçada, inteligente, informada, formada, viajada, escritora. E não vão descobrir tão cedo, a menos que eu domine logo esse idioma e me apresente.

Então é isso. Sem novidades notáveis, por enquanto. Sigo driblando essa tendência natural de me esconder e ando encarando o mundo todos os dias. Gente de todo tipo que tem me ensinado que meu valor não tem nada a ver com o que as pessoas conhecem a meu respeito  muito menos com o que eu posso provar sobre mim. O que eu sou não tem a ver com a condição na qual elas me enxergam. O que eu valho vem de dentro, vem de antes, vem de joelho.

9 comentários sobre “Delay

  1. Vi o seu post através do blog Antesqueelescrescam. Realmente essa é uma sensação complicada. Eu me sentia algo como um deficiente. O que devia ser algo cotidiano e quase inconsciente se torna um esforço. Tanto que imagino que é uma das grandes razões que leva pessoas que emigram, ou simplesmente vão morar fora, à depressão. A dificuldade em se comunicar nos leva a ficar ainda mais isolados, como se a diferença cultural já não fizesse isso. E é essa uma das razões porque morar fora é muito diferente de ser turista.

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    1. Muito bem colocado!! Você fala como autoridade sobre o assunto. Muito bem pensando mesmo, super concordo. Vi que vc queria mais dicas sobre morar fora, certo? Vc mora aqui nos EUA também? Há muito tempo? Fiz um post novo hoje, “O problema dos começos”, se puder dá uma espiada também. Tem tudo a ver com essa minha fase maluca aqui 🙂

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      1. Muito obrigado, no meu caso morei no Reino Unido para estudar e ainda não tinha família como eu tenho hoje. Você certamente terá uma experiência mais profunda que eu tive. Te desejo boa sorte e vou te acompanhar de vez em quando.

        E novamente meus parabéns, eu adoro Brasília mas as pessoas da cidade têm uma preocupação com segurança e estabilidade que eu considero algo exagerada. É bom ver alguém não se deixando levar pela maré.

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  2. Eu sei como é isso, já me senti assim quando morei em Dublin. Só queria te dizer que as pessoas vão perceber (se já não perceberam) que você é tudo isso que descreveu e muito mais, antes mesmo de você dominar esse novo idioma, porque a comunicação não é feita somente através de palavras, existe todo um conjunto (comportamento, expressões, gestos, etc). Imagine se uma criança precisasse do domínio da linguagem para que sua família a entendesse? rs. Daqui uns dias você naturalmente já estará conversando e se fazendo ser entendida, e até sonhando nesse novo idioma. Boa sorte, abraços.

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    1. Sabe que eu pensei mesmo sobre essa lance dos bebês? Aí eu pensei em chorar quando precisar de alguma coisa, mas não deve funcionar muito bem, rsrs. Brincadeira. Tomara que sua profecia se cumpra e logo logo eu aprenda esse idioma, rs. Dublin era uma das opções de lugares pra gente morar, mas acabamos optando por um caminho mais conhecido, US. Obrigada pelo carinho. Beijo pra vc, Letícia.

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  3. Depois melhora. Vai dar tudo certo! 🙂 Cheguei aqui porque uma amiga comentou no post de alguém que havia compartilhado o texto de Brasília. Belo blog, você escreve muito bem. Em breve vai poder expressar suas ideias no novo idioma. E o Noah também vai curtir tanto a nova escola que não vai nem precisar usar a nova frase: I want my mom… Boa sorte! Todo começo é difícil!

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